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quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Em terra de cegos



Em rápida sequência, passaram pelo Brasil os presidentes de Israel, Shimon Peres, da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, e do Irã, Mahmoud Ahmadinejad. Os três parecem acreditar que o governo brasileiro pode ter alguma influência sobre os impasses do Oriente Médio, depois de frustradas as expectativas de uma iniciativa relevante de Washington.

Lula recebeu bem a todos, reafirmou o direito do Irã a um programa nuclear pacífico, de Israel à paz dentro de suas fronteiras e da Palestina à independência. Prometeu retribuir as três visitas e convidou gregos e troianos das margens do Jordão a unirem forças contra a seleção canarinho em um inédito combinado. O treinador, se conseguir levar a proposta, merecerá o Nobel da Paz mais que o presidente dos EUA.

A recepção a Ahmadinejad pode ter sido uma “cotovelada” em Barack Obama e ter contribuído para minar o esforço do Ocidente para isolar o regime iraniano, como disse o New York Times. Mais discutível é se, como insistiu esse jornal e outros dos EUA e da Europa, tenha enfraquecido a projeção internacional do Brasil ao “macular” sua imagem e mostrar que “ainda não pode ser levado a sério como um personagem no cenário internacional”, como quis um deputado de Washington.

Horas antes da chegada do iraniano, Obama enviou um aparentemente inábil fax de duas páginas e meia a Lula cobrando sua posição quanto a direitos humanos e ao programa nuclear Irã e justificando as atitudes dos EUA em Honduras, OMC e Copenhague. O teor exato não foi revelado, mas caiu mal no Planalto. O assessor Marco Aurélio Garcia disse entender que o presidente dos EUA enfrenta dificuldades internas, mas ainda assim é uma decepção e foi lamentável sua atitude de legitimar o golpe em Honduras. No dia seguinte, o chanceler Celso Amorim jogou água na fervura: “Eles estão no Norte e nós no Sul. Vemos as coisas de maneira diferente, mas não há razões para tensão”.

Lula e a diplomacia brasileira ganharam importância não por acatar as opiniões das potências ocidentais, mas por conduzir uma política independente, respaldada em um arco de alianças mais amplo que o (cada vez mais relativizável) “Ocidente Desenvolvido” e por uma economia que reduziu sua dependência da boa vontade dos países ricos e de suas agências. Como apontou a revista Time, é natural para Lula defender o direito do Irã à mesma tecnologia nuclear que o Brasil possui e usa, e “isso o põe em alguma parte entre os dois lados – justo onde um mediador gosta de estar”.

Não se sabe exatamente quais questões Obama tinha em mente em abril, ao saudar efusivamente Lula e qualificá-lo como “o político mais popular da Terra” na reunião do G-20, mas não estava apenas brincando – e certamente não teria motivos para dizer isso se esse governo brasileiro tivesse sido tão cordato e submisso quanto o foram alguns dos que o precederam.

A própria importância da cúpula, que substituiu a do G-8 como principal fórum da economia global, foi uma consequência indireta da decisão do Brasil de articular um bloco de vinte e poucos países periféricos na reunião de Cancún de agosto de 2003, para se contrapor ao G-8 e sua pretensão de abertura unilateral dos mercados periféricos. Foi seguido pelo bloqueio da iniciativa estadunidense da Alca no fim desse ano e acompanhado por uma ofensiva para aprofundar laços diplomáticos e comerciais com países periféricos de todo o mundo e aliar o Mercosul aos demais países da América do Sul.

Durante anos, esses esforços foram continuamente atacados pela oposição brasileira e desvalorizados pela imprensa internacional. Às vésperas da eleição presidencial de 2006, The Economist fazia eco à propaganda tucana ao falar de “encolhimento do Brasil”, dar o país como “espectador irrelevante” dos acontecimentos na América do Sul e considerar sua política externa uma “confusão”, dando como exemplo o esforço de aproximação de países africanos, do Oriente Médio e da Ásia, “com resultados esquálidos”. A “voz mais forte” da América Latina não era Lula e sim Chávez, que exercia a liderança pretendida pelo Brasil e o “humilhara” na Bolívia. Chegou a opinar que Lula devia reeleger-se “de maneira notável, embora talvez injustificada”.

Em dezembro de 2008, a revista reconhecia a contragosto o equívoco: “O Brasil de fato tornou-se muito mais influente”. A tão desdenhada Unasul fora fundada, lidara com conflitos entre Colômbia e Equador e na Bolívia sem interferência dos EUA ou da OEA, e na Cúpula dos Povos do Sul de Salvador, em dezembro, os 33 países da América Latina e do Caribe se reuniam, pela primeira vez na história, sem a presença dos EUA ou de europeus. A revista julgava ser uma anomalia temporária, resultante de os EUA estarem no fim de uma “Presidência desastrosa”. Em 2009, previa The Economist, “os EUA terão um popular novo líder que sem dúvida será o astro da Cúpula das Américas em abril”. Nas previsões para O Mundo em 2009, ignorou o G-20 e previu: “O Brasil vai continuar a se sair melhor que o México, mas nenhum dos dois se sairá bem”.

Meses depois, Obama, de mãos vazias, não conseguiu roubar o show na Cúpula das Américas e o G-20 tornou-se o foco das atenções. O México, por excesso de dependência dos EUA e de fidelidade ao modelo neoliberal, sofria a pior crise da América Latina e o Brasil, graças à recuperação do papel do Estado na economia, aos programas sociais e à diversificação de laços externos, tornou-se exemplo de superação da crise. O índice de desemprego voltou à normalidade antes do fim do ano, enquanto o dos EUA atingiu um patamar não visto desde o segundo choque do petróleo e continuava em alta.

Em setembro, quando da Assembleia da ONU, a revista estadunidense Newsweek repetiu o diagnóstico de Obama e destacou o presidente do Brasil como “astro da ONU”. A concorrente Time descreveu o País como “primeiro contrapeso real aos EUA no Ocidente” e a alemã Der Spiegel como o “gigante gentil” pela pressão não violenta contra o golpe em Honduras.

Depois que Lula ajudou a convencer o Comitê Olímpico a escolher o Rio de Janeiro para 2016, apesar do lobby simultâneo de Obama pela favorita Chicago, os jornais britânicos The Independent e Financial Times, a revista The Economist e o jornal espanhol El País destacaram matérias sobre a prosperidade e a crescente importância internacional do Brasil.

Em novembro, o País continuou em destaque na conferência da FAO sobre a fome em Roma e nos preparativos para o encontro em Copenhague. A revista Der Spiegel cobre a transposição do rio São Francisco, descreve Lula como o “pai dos pobres” que deflagrou um “milagre econômico” (aparentemente inconsciente das conotações históricas polêmicas e opostas das duas expressões no Brasil) e cita o País como “o astro do BRIC”.

Objetivamente, o Brasil e seu comportamento na arena internacional não mudaram entre 2008 e 2009. Seu crescimento neste ano não será espetacular e os problemas de sua diplomacia, incluindo atritos com vizinhos e dificuldades em articular acordos comerciais mais estáveis e abrangentes, continuam mais ou menos os mesmos. Alteraram-se de maneira inesperada, porém, os paradigmas e as referências que o avaliavam.

Primeiro, morreram o Consenso de Washington e o dogma de que a prosperidade seria garantida pela adesão à globalização neoliberal e pela expansão do consumo dos países ricos. Foi-se o projeto de desenvolvimento dependente que norteou a diplomacia brasileira antes de Lula e continuou a servir de referência a países como o México. Com uma política comercial voltada a mercados periféricos em rápido crescimento e uma política social de inclusão, o Brasil pôde exportar para a China e outros países da Ásia e África ou vender para sua própria classe baixa ascendente o que perdeu no comércio com os EUA e Europa. Enquanto os países do Norte perdiam o dito-cujo, a política Sul-Sul deixou de ser uma anomalia para indicar uma direção viável.

Segundo, a hegemonia econômica e financeira do Norte foi subitamente abalada, deixando-os com pouco a oferecer às elites dos países periféricos. Os EUA não têm mais um mercado em rápido crescimento e precisa cortejar a China e outros países com reservas acumuladas como o Brasil (hoje quarto maior credor dos EUA) para financiar seu déficit explosivo e ajudar (com a intermediação do FMI) a conter a crise nas economias mais frágeis, como as da Europa Oriental.

Terceiro, mas não menos importante, a coesão política interna do Norte se enfraqueceu. Embora inicialmente visto com muita simpatia, Obama mostra-se incapaz de dar um novo rumo às relações exteriores dos EUA.

Como Lula no início do mandato, Obama herdou do governo anterior uma grave crise econômica e uma oposição intransigente. Para governar em minoria, Lula cedeu ao capital financeiro e abriu mão de grande parte de seus objetivos de política econômica (para só retomá-las no segundo mandato, parcialmente), mas manteve a iniciativa na política social e desde o início conduziu as relações internacionais como pretendia.

Já Obama, apesar de deter teoricamente a maioria nas duas casas do Congresso, cedeu em quase tudo e mais visivelmente na política externa. Desistiu de fechar a prisão de Guantánamo no prazo prometido, de promover uma nova liderança no Afeganistão, de conter o envolvimento militar no Oriente Médio, de comprometer-se com acordos ambientais, de pressionar Israel por um acordo com a Autoridade Palestina e de mudar o relacionamento com a América Latina.

Em artigo recente, o economista Jeffrey Sachs afirma que “a crise de governança dos EUA é a pior na história moderna e provavelmente se agravará nos próximos anos. A agenda de Obama está paralisada e as divisões ideológicas vão se aprofundando. O processo político, em si, está quebrado”.

Um exemplo foi a crise em Honduras. Embaixadores e porta-vozes dos EUA se contradisseram, mostrando dificuldade da Casa Branca de decidir ou de impor uma política. O Departamento de Estado depois pareceu apoiar a exigência dos latino-americanos de um acordo para legitimar as eleições – mas depois o traiu por um preço irrisório. Democracia e relações de confiança com a América Latina mostraram valer menos para a Casa Branca do que um funcionário de segundo escalão – Arturo Valenzuela, que os republicanos aceitaram para subsecretário para a América Latina em troca do reconhecimento do golpe.

Rebatizado o regime golpista de Roberto Micheletti de “governo de unidade nacional”, Obama prometeu reconhecer as eleições, apesar da repressão de manifestações, detenções ilegais, assassinatos políticos e fechamento de canais antigolpistas. Somada à insistência nas bases na Colômbia, a decisão decepcionou os latino-americanos moderados e enfureceu os radicais, cada vez mais convencidos da inevitabilidade do confronto armado.

A União Europeia está paralisada de forma ainda mais estrutural pela falta de consenso entre integrantes para conduzir uma política externa consequente. A China, embora tenha o porte econômico de superpotência, ainda não age como tal. Todas as potências, mais ou menos afetadas pela crise, estão ocupadas demais em puxar a brasa para as subitamente escassas sardinhas para pensar em propor um novo modelo e dispor-se a liderá-lo.

Entre diplomacias imediatistas, enredadas em conflitos partidários e regionais em torno de interesses econômicos imediatos e mesquinhos, o Brasil de Lula e Amorim ousou com habilidade. Fez da falta de ambições militares e da necessidade de ampliar laços com o mundo a partir de uma posição intermediária entre as dos países mais ricos e os mais pobres uma alavanca para se tornar um interlocutor – e eventualmente mediador – aceitável por todos, capaz de ocupar o espaço diplomático esvaziado de autênticas lideranças globais e articular as alianças mais diversas.

Isso coloca Lula e o Itamaraty, vez por outra, em companhias moralmente pouco recomendáveis. O governo brasileiro poderia mostrar mais disposição de combater as violações de direitos humanos no cenário internacional. Sem deixar de expor a hipocrisia e a seletividade de países desenvolvidos quanto a direitos internacionais e humanos, demasiadas vezes distorcidos por critérios desiguais que os reduzem a meros pretextos para justificar seus objetivos.

Corrupção é pretexto para negar ajuda econômica a países pobres e lhes impor políticas de desregulamentação e privatização exigidas pelo FMI, mas não para reduzir a ajuda econômica e militar aos amigos. Aliados – como Israel, Arábia Saudita, Afeganistão, Colômbia, Egito e Paquistão, entre outros – podem cometer os mesmos atos de agressão a vizinhos, proliferação nuclear, repressão ao próprio povo, fraude eleitoral e cumplicidade com o narcotráfico que servem de pretexto para justificar sanções, ameaças e intervenções contra regimes que contrariam seus interesses estratégicos. E ainda ganham pontos ao oferecer os serviços de seus torturadores aos países ricos quando eles julgam necessário esquecer os direitos humanos e a lei internacional ao lidar com seus inimigos. Esse modelo não é o norte moral que sirva ao Itamaraty.
Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa

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