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sábado, 5 de dezembro de 2009

A dignidade perdida


A dignidade perdida
04/12/2009 16:27:49

Sócrates
Moderno, muito moderno! Mas, afinal, o que vem a ser moderno? Quando Rousseau usou pela primeira vez a expressão, a palavra “moderno” tinha o mesmo sentido que o atual, bem antes da Revolução Francesa e da Americana. O filósofo refletiu e discutiu como poucos de sua época sobre algumas das mais interessantes tradições modernas, como, por exemplo, a democracia participativa. Ele queria demonstrar as contradições implícitas nas transformações futuras ou em processos de amadurecimento.

Muitos séculos atrás, portanto, ele incomodava seus contemporâneos ao declarar em alto e bom-tom que a sociedade europeia estava à beira do abismo. O Velho Continente estava próximo de grandes perturbações revolucionárias decorrentes do que ele chamava de turbilhão social. Referia-se ao “espírito do tempo” dos grandes aglomerados humanos em formação, herança da migração do homem do campo para a cidade. Semelhante ao que se viu em nosso país em meados do século XX, com a formação de megalópoles insensíveis, irracionais e desfiguradas pela invasão descontrolada de uma imensa massa humana que perseguia um eldorado imaginário.

Certa vez, um dos personagens de Rousseau realiza uma, digamos, expedição ao olho do furacão social – uma viagem que seria empreendida por milhões de jovens no Primeiro Mundo e por desvalidos dos recantos menos desenvolvidos nos séculos seguintes. E o que ele vivencia? Uma sociedade em permanente conflito, geradora de conluios os mais diversos e em um contínuo ir e vir de opiniões antagônicas. Ou seja, seres eternamente contraditórios.

Nota ainda as inúmeras oportunidades que se lhes apresentam e repara na necessidade de estar pronto a eventualmente modificar os seus princípios, com o objetivo de ajustar os passos perante a plateia.

Entre as frases desse personagem, algumas ferem as “modernas” convicções. Uma em particular nos fala alto: “De todas as coisas que me atraem, nenhuma toca meu coração, embora perturbem meus sentimentos de modo a fazer com que me esqueça de quem sou e qual é o meu lugar”. Chocante como tudo o que até hoje nos cerca, os tais “tempos modernos”. Uma atmosfera estressante a nos embriagar e sedar, expandindo o nosso leque de experiências possíveis, as quais, contudo, serão usufruídas somente se destruirmos nossas barreiras morais.

E no futebol, “moderno” quer dizer o quê? O que seria arcaico e o que é “moderno” e contemporâneo? Contemporâneo no sentido clássico do termo indica o período iniciado na Revolução Francesa, no qual a razão deveria imperar, a ciência encontraria respostas a todas as querências humanas e a civilização progrediria sempre, a partir dos conhecimentos que gradativamente seriam adquiridos. Terminologia questionada em sua essência quando constatamos os terríveis e sangrentos conflitos que insistem em se perpetuar mundo afora e que são obra dos chamados povos desenvolvidos. Conflitos por energia, riquezas ou simples mania de mandar.

Teríamos de considerar arcaico o futebol ou seus precursores como um jogo de bola que seria praticado na China 26 séculos antes da nossa era. Ou o jogo indígena com bola de látex – como até hoje ocorre na Amazônia – conhecido pelos navegadores espanhóis quando aportaram em terras americanas. Ou o Calcio italiano, cujas regras foram fixadas no fim do sé-culo XVI. Por extensão, o que veio depois seria o “moderno”?

Não exclusivamente, diria eu. O futebol “moderno” deve ser chamado assim a partir do momento em que esse esporte tornou-se um grande negócio e, como consequência, perdeu muito de sua beleza, encanto, paixão e ingenuidade. Ou seja, tenha deixado de ser exclusivamente humano para se transformar no “moderno” de Rousseau.

Onde já não cabe o chamado “amor à camisa” evidente, por exemplo, no rosto do goleiro Barbosa, responsabilizado pela derrota da nossa seleção no único mundial disputado em terras tupiniquins. Barbosa, que carregou com galhardia o terrível fardo que destruiu sua simples e dedicada existência, como se debulhasse o trigo.

O goleiro da seleção é, porém, de um tempo em que os jogadores não viviam em eterna contradição, conluios nem conflitos. De um tempo em que as oportunidades eram poucas e que, por isso, não precisavam mascarar seus princípios. Tempo em que jogar futebol tocava seus corações apaixonados pelo jogo. E a atmosfera que os cercava nem de longe os sedava e cegava. E onde os goleiros sempre tentavam defender todas as bolas, inclusive os pênaltis, mesmo os incompreensíveis. Eram tempos nada “modernos”, como se pode ver. E, no entanto, muito mais dignos.



Sócrates
Pênalti
http://www.cartacapital.com.br/app/coluna.jsp?a=2&a2=5&i=5634

Um comentário:

Unknown disse...

O texto reflete o tema do modernismo. O termo "moderno" usado por Rosseau para indicar as transformações e contradições que aconteciam com o avanço nas sociedades era invadida por um turbilhão de transformações as quais não estava preparada para a mesma, como exemplo a urbanização,saída do homem do campo para a cidade, isso se reflete hoje no inchamento das cidades e dificuldades de atender as necessidades mais básicas e essenciais dos cidadãos, isso é modernidade! Faz uma crítica ao moderno como marco desvalorizador do "tradicional", isto é, aquilo que não surgiu na modernidade perde sua relevância. O modernismo vem então colocar em cheque valores vividos, porque não são "modernos", portanto,perde-se a dignidade.
Termino com esta frase significante do texto que muito me chamou atenção: "De todas as coisas que me atraem,, nenhuma toca meu coração,embora perturbem meus sentimentos de modo a fazer com que me esqueça de quem sou e qual o meu lugar".